Há muito que sigo com alguma curiosidade a obra de Abbas Kiarostami.
Infelizmente, não consegui ainda ver muitos dos seus filmes pois são difíceis de encontrar mesmo no universo streaming.
Quando vi Ten (Dez, 2002) fiquei maravilhada. O que dizer de um filme cujo enredo se desenvolve através das conversas que a protagonista estabelece com as várias personagens que entram e saem do seu carro? Curiosa, pesquisei e descobri que esta mise-en-scène é uma das prediletas do realizador que sente fascínio por este espaço, por vezes claustrofóbico, que oscila entre o público e o privado, colocando as personagens numa proximidade espacial que é simultaneamente de intimidade, de diálogo e partilha de emoções. Ten (Dez) é uma reflexão sobre a condição da mulher no Irão, a sua necessidade de afirmação perante uma sociedade que lhe coloca um “espartilho” e que lhe impõe um papel restritivo de esposa e mãe.
Mais tarde vi este “O sabor da Cereja” (1997),“Taste of cherry,” e o deslumbramento continuou. O enredo é surpreendente: um homem circula dentro do seu carro nos arredores de Teerão, por um cenário árido de terra batida e estradas sinuosas, dando boleia a várias outras personagens masculinas que entram no seu Land Rover e que acabam- perante o desconforto do seu pedido- por sair um pouco atordoadas. De facto, Badii (representado pelo maravilhoso Homayound Ershadi)) tem um pedido aparentemente simples, mas que se revela terrivelmente difícil de satisfazer. O homem pretende suicidar-se e pede apenas que, a troco de dinheiro, alguém lhe coloque terra numa campa que improvisou abrindo um buraco no solo, debaixo de uma cerejeira, uma das poucas imagens de vida e fertilidade que povoa o universo seco e quase desnuado que o circunda. Todos recusam aceder a este pedido inusitado pois o suicídio é inaceitável na religião muçulmana e, tal como o estudante de seminário a quem Badii solicita ajuda refere, o suicídio é um ato de destruição, e deste modo, contra as leis do Corão. Mas eis que chegamos a uma personagem, também ela encurralada, que precisa desesperadamente de dinheiro para salvar um filho doente. Este homem, o último de uma sequência, é um velho turco que acede cumprir os requisitos de Badii não sem antes tentar dissuadi-lo da sua intenção numa conversa intimista de contornos quase filosóficos. Partilhando uma história pessoal, este velho turco confessa que também no passado tentou o suicídio mas, quando tentava enforcar-se numa árvore de amoras, saboreou antes um destes frutos e o seu gosto único, doce e saboroso, trouxe-o de volta à vida concedendo-lhe a vontade de continuar.
E é simplesmente isto que este velho turco partilha com Badii, o gosto de um fruto pode salvar-nos do desespero e, em vez de querer morrer debaixo de uma cerejeira, porque não sentir antes o sabor da cereja? É o que nos diz este filme maravilhoso, contido nas suas emoções, delicado na forma como aborda o desespero, apenas pressentido pelo olhar triste e errático de Badii, nunca explicado porque a dor é intraduzível e tudo fica suspenso na última imagem em que este se deita finalmente num buraco no solo, por baixo da cerejeira.
Convido-vos a ver e a descobrir este realizador, considerado por muitos um dos maiores realizadores de todos os tempos.
Elsa Andrade
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