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Carolina Bastos Pereira

O Espelho - Reflexo da essência humana

O que somos?

Memória. Ou a nossa casa. Ou a marca de uma mão numa mesa de vidro, que se esvai em segundos. Ou então um incêndio num celeiro, constante insatisfação, o ter de começar de novo. Ou então o momento em que nos vemos ao espelho pela primeira vez.

Andrei Tarkovsky mostra-nos que somos tudo isso, numa aparente autobiografia, O Espelho, de 1975. Mas depressa percebemos que Tarkovsky faz a nossa biografia também.

Ser humano é estar sempre sob um véu. É esse véu que nos faz interrogar, mas é também esse véu que nos permite a nostalgia. E creio ser esse o tema d’O Espelho: a nostalgia perante o véu, perante a consciência da morte.

Mas O Espelho é também sobre a descoberta da essência do Homem, do que nos é comum. E o que nos é comum é virar uma jarra de leite e vê-lo escorrer, e apercebermo-nos disso, e acharmos isso bonito, cómico, triste, ou apenas capturarmos isso na nossa memória, e um dia, quando nos perguntarem sobre aquele verão na casa de infância, só nos sabermos lembrar da jarra de leite derramado, a escorrer lentamente.

É esse captar de pequenos episódios, o movimento de um dedo do pé, cabelos longos refletidos num espelho (espelhos esses que, aliás, estão em toda a parte), um sorriso nuns lábios gretados, o voo de um pássaro, que tornam este filme tão especial, quase apelando à transcendência que só o Homem atinge através da Arte. O Espelho é Arte, no seu estado mais puro, mais elementar, e, a meu ver, mais belo, porque vem de dentro e trás algo de que nem sabíamos que precisávamos, mas precisávamos.

Certamente cada um de nós terá o seu próprio leque de flashes, pormenores de um panorama que nem sempre recordamos. Um sabor, a descoberta de uma nova palavra, um déjà-vu, o cheiro de alguém que nunca mais vimos, coisas que o tempo distorce até não termos a certeza de serem reais. Genial é transpor isso em imagens, é construir um filme que é, em si mesmo, um déjà-vu, um filme que carrega um pouco de nós, e que é, por isso, intemporal, não pode ser apagado.

Seguramente não compreendi O Espelho na sua complexa totalidade, no seu cruzar de flashes sem linha temporal, na sua fusão da imagem da mulher com a de mãe, do filho consigo mesmo, da visão da arte por uma criança que folheia um livro sobre Da Vinci. No entanto, há um sentimento exterior a tudo isso, e a toda a mensagem por trás da obra. Chamam-lhe nostalgia. Não sei ao certo o que é, mas sei que quem vir O Espelho a sentirá, e o leque de imagens de Tarkovsky servirá para o espectador recordar o seu.


Carolina Bastos Pereira

74 visualizações2 comentários

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2 Comments


Rosa Mendonça
Rosa Mendonça
Jan 30, 2021

Carolina,

Muito Obrigada .

Adorei "ouvir-te" no tom intimista e sentido com que "refletiste" a tua imagem do espelho.

Quero muito poder desfrutar desse filme. Vou tentar faze-lo num tempo breve.

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Elsa Andrade
Elsa Andrade
Jan 30, 2021

Carolina, Tarkovsky é só para "eleitos", para quem como tu tem a profundidade e a sensibilidade de ficar tocada pela beleza das imagens deste mestre. A poesia, a memória, a brevidade de instantes que nos marcam , como um cheiro familiar, o jarro de leite derramado, os voos de pássaros, all fleeting images that remain in our memory. Eu acho que a tua análise é absolutamente brilhante. Tal como tu, fico mesmerized pela beleza que este realizador nos oferece. Obrigada!

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