Num tempo em que o mundo parece submerso num mar tecnológico, numa letargia que nos automatiza e nos faz aceitar a estandardização e a rotina casa-trabalho, com um objetivo nebulado no horizonte do qual tantas vezes nos esquecemos e para o qual nos apagamos gradualmente, Nomadland chega como uma lufada de ar fresco. Não obstante, o filme tem uma carga emocional muito forte e chega a comover pelo enredo pesadíssimo e pela exibição do “lado negro” do famoso (e enganoso) american way of life.
Nos minutos iniciais, cita-se a letra da música Home is a Question Mark: “Home is just a word or is it something you carry within you?”. Esta frase marca o tom de Nomadland, um filme sobre a procura de liberdade, de desprendimento das raízes, para se descobrir a nossa verdadeira essência.
Fern (interpretada pela genial Frances McDorman), torna-se, após a morte do marido, uma nómada moderna: vive numa caravana (“I’m not homeless, I’m just houseless”), numa solidão forçada, e parte numa viagem sem destino, mas com um objetivo: sair da sua vida monótona e sem sentido, não trabalhar para sobreviver, tentar viver, tentar encontrar nas pedras do deserto do American West um sentido para a vida, que, descobre, nunca viveu. Pretende fazer-se à estrada até não ter nada que a prenda a ninguém, muito menos a questões materiais. A morte do marido devastou Fern, mas foi necessária para a sua autodescoberta.
Toda a imagem do filme é realista, quotidiana, monótona, mas, ao mesmo tempo, intercalada com paisagens fabulosas do deserto do oeste, que nos dizem que a chave para o sentido da vida está ali: um bando de gaivotas a voar ao fim da tarde é mais verdadeiro do que qualquer emprego, escritura de uma casa, o marido já “morto” em estado vegetativo. Chloé Zhao mostra-nos que viver é reparar nas pequenas coisas. Como afirmou Saramago: “Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara”.
Apesar de tudo, Chloé Zhao deixa-nos com uma interrogação sem resposta: “Home is just a word or is it something you carry within you?”. De facto, Fern carrega, ao longo da sua jornada, o seu anel de noivado, do qual não sabemos se conseguirá algum dia desprender-se. Será possível ao Homem desligar-se por completo do seu passado, viver para si e para a natureza?
A única coisa que é garantida a Fern ao longo da sua jornada é que voltará a ver o seu marido: no voo de uma gaivota, na forma peculiar de uma pedra, numa noite com estrelas. Só morre quem é esquecido, e viajar não é, afinal, esquecer, é encontrar.
“See you down the road”.
Carolina Bastos Pereira
wonderful text Carolina. Muito obrigada pelo teu olhar delicado neste comentário profundo e elegantemente escrito sobre um filme que nos ´dá o outro lado do American Dream